Conclusão

 

A Lei n.º 13.123,1 conhecida como Lei da Biodiversidade Brasileira, foi publicada no DOU em 20 de maio de 2015 e entrou em vigor 180 dias após sua publicação, ou seja, conta com quase 6 anos de existência e já se tornou uma realidade para seus diversos usuários.

Trata-se de uma lei inovadora e que é um alento, se comparada com sua predecessora, a Medida Provisória n.º 2.186-16/20012 que, reconhecidamente, representou um atraso para o Brasil em diversos aspectos, principalmente em relação à pesquisa e desenvolvimento.

Desde que entrou em vigor, a Lei n.º 13.123/15 experimentou sua regulamentação por meio do Decreto n.º 8.772/163 e foi o estofo para todo o contexto jurídico do período. Esse contexto compreendeu o árduo processo de adequação e regularização experimentado por diversos usuários que realizaram acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional associado em período prévio a 2015.

Curiosamente, ainda hoje ocorrem situações em que é possível a adequação e a regularização para o acesso ao patrimônio genético e/ou ao conheci[1]mento tradicional em período prévio à legislação atual. Essa situação se altera radicalmente dependendo da atividade de cada um dos usuários, principal mente para a academia, que tem regras específicas de regularização. Especificamente para a indústria, as principais exceções estão inseridas na Resolução CGen n.º 23/20194 e na Portaria MMA n.º 199/20.5

Esse contexto jurídico compreendeu também a construção de um sistema eletrônico de cadastros, o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado (SisGen), que busca contemplar no Brasil toda a atmosfera de ABS (sigla em inglês para Access and Benefit-sharing), culminando com a execução da repartição de benefícios.

A despeito do tempo que está em vigor, a Lei n.º 13.123/15 continua em processo de construção de alguns de seus aspectos estratégicos que ainda não foram devidamente implementados, como:

a) formação do comitê gestor, para tornar operacional o Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios;

b) realização de upgrades necessários no SISGen;

c) resoluções que forneçam segurança jurídica à repartição de benefícios de forma não monetária;

d) maior disseminação de informações sobre conhecimentos tradicionais associados;

e) maior disseminação de informações sobre a exportação de produtos, para não gerar insegurança jurídica em relação aos órgãos de controle.

Mesmo que não tenha sido totalmente implementada e ainda necessite de ações que a tornem mais efetiva, a Lei n.º 13.123/15 vem se mantendo hígida e não tem ocorrido ameaças concretas de alterá-la ou revogá-la.

Sob nossa ótica, no entanto, estamos enfrentando, pela primeira vez, a necessidade concreta de alteração dessa lei em razão da necessária harmonização com o Protocolo de Nagoia,6 que foi finalmente ratificado pelo Brasil em 4 de março de 2021 - data em que o Brasil depositou seu instrumento de ratificação na Organização das Nações Unidas (ONU)-, e entrará em vigor no dia 2 de junho de 2021.

O Protocolo de Nagoia é um tratado internacional que decorreu da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). A interpretação do protocolo será feita por meio de uma leitura harmônica entre este e a CDB. Isso porque é essa convenção que define os conceitos e as obrigações necessários para a compreensão do protocolo.

O Protocolo de Nagoia procura implementar um dos principais objetivos da CDB, que é a repartição de benefícios, ou seja, a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos pela Parte Usuária/Usuários (o país que acessou os recursos genéticos) com a Parte Provedora/Provedores (o país de origem desses recursos).

Esse protocolo se trata, em apertadíssima análise, de um instrumento que permite aos países provedores que disciplinem a forma que outros países/usuários tenham conhecimento e obedeçam às regras de acesso e repartição de benefícios, definidas pelos países provedores por meio de sua legislação local.

Com o Protocolo de Nagoia efetivamente ratificado, o Brasil aderiu aos direitos e às obrigações previstos nesse instrumento, ou seja, deve respeitar as regras locais de cada um dos países signatários e, em contrapartida, fará com que os signatários obedeçam às regras definidas em sua legislação. Assim, a partir de agora, nasce a necessidade de o país se adaptar ao protocolo, alterando sua legislação local, o que terá reflexos em diversos órgãos e departamentos governamentais brasileiros.

As adaptações são de grande envergadura. Como exemplos dessas adaptações, podem ser citadas as necessidades de:

a) harmonização entre a Portaria n.º 199/20, do Ministério do Meio Ambiente, e a regra geral do Protocolo de Nagoia, que consiste na não retroatividade;

b) definição do “ponto focal” para a interlocução com o secretariado da ONU;

c) consolidação do CGen como “autoridade nacional”, inclusive com recursos adequados para que isso seja feito;

e) definição dos “pontos de controle”, que terão o papel de frear o uso de biodiversidade estrangeira quando esse for feito de forma irregular, entre outros pontos de igual relevância.

Não nos parece possível a hipótese de que determinadas alterações regulatórias sejam feitas por meio de resoluções ou atos normativos, principalmente porque deve haver uma legislação clara que autorize o cidadão/pessoa jurídica do Brasil a fazer remessas de valores para o exterior, para efeito de repartição de benefícios de forma monetária.

Sob outro prisma, o Brasil deve, definitivamente, dar atenção às legislações de ABS dos países que já ratificaram o Protocolo de Nagoia, para que se prepare, de forma estratégica, não apenas para conhecer os mecanismos de acesso e repartição de benefícios, com também para se certificar da viabilidade comercial de continuar fazendo uso (ou não) de determinadas matérias-primas.

O Artigo 14 do Protocolo de Nagoia prevê um mecanismo bastante inteligente, inovador e transparente de acesso às regras locais de ABS (e a outras informações relevantes) pelos países usuários e provedores, e por qualquer país que não seja membro e queira acessar essas informações. Esse mecanismo, denominado ABS-Clearing House,7 já está em vigor.

A questão é de alta complexidade. Para se ter noção, por analogia, no âmbito da transferência de tecnologia ou licença de patentes averbadas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), qualquer remessa que o brasileiro pretenda fazer deverá ser validada não apenas por esse instituto, mas também pelo Banco Central do Brasil, além, obviamente, de já ter disposição legal expressa (Lei n.º 9.279/96).8  De acordo com o artigo 62 dessa lei:

“Art. 62 - O contrato de licença deverá ser averbado no INPI para que produza efeitos em relação a terceiros.

§ 1º A averbação produzirá efeitos em relação a terceiros a partir da data de sua publicação. [...]”

 

Conclusão

É seguro afirmar que o Brasil é, ao mesmo tempo, um país provedor de matérias-primas relevantes para o comércio global e usuário de matérias-primas estratégicas para o mercado interno. Em razão disso, deve estar muito atento e se dedicar para que a ratificação do Protocolo de Nagoia represente, de fato, uma oportunidade de ganhos e incremento em sua balança comercial.

 

 

Luiz Ricardo Marinello é advogado, sócio de Marinello Advogados, mestre em Direito pela PUC/SP, membro do Conselho da Associação Brasileira de Cosmetologia (ABC), Professor no INSPER, ESA e FASIG.

 

Este artigo foi publicado na revista Cosmetics & Toiletries (Brasil), 33(3): 34-35, 2021.